quarta-feira, 20 de julho de 2016

#LeiaMulheres: Carson McCullers

O meu primeiro contato com a Carson McCullers foi através do livro "A Balada do Café Triste". Eu fiquei tao embasbacada e chocada que nao consegui nem fazer resenha aqui no blog na época. Até entao eu nao conhecia o estilo literario americano Southern Gothic, é a coisa mais estranha e genial que ja li. As historias se passam em cidadezinhas pobres e esquecidas no fim do mundo, os personagens parecem que sairam do American Horror Show, gente completamente esquisita, tanto na aparência como nas atitudes, alguns agem como animais selvagens, outros sao completamente indefesos. Eu e minha estranha mania de torcer para algum deles se dar bem, mas o livro é como a vida, tem gente que faz o seu melhor e nunca vai ser recompensado, nunca vai ter paz, nunca vai chegar a lugar nenhum.
Além de "A Balada do Café Triste", terminei de ler o "O Coraçao é um Caçador Solitario" para a leitura em conjunto do "Clube dos Classicos Vivos" e ainda estou chocada, fiquei muito mal esta semana pensando nestes personagens e em mim mesma, pois também tive grandes expectativas nesta e vida e devido às circunstâncias vi cada uma delas desmoronarem como um castelo de cartas, hoje posso me considerar um ser frustrado e conformado e isso me assusta. 
Vou tentar um resumo de cada um dos livros que li:

A Balada do Café Triste

"É uma terra lúgubre. Pouco mais tem do que a fábrica de algodão, as casas de dois quartos onde vivem os operários, algumas árvores, a igreja com duas janelas de vitral e uma feia rua central que não chega aos cem metros de comprimento. Aos sábados, os caseiros das herdades vizinhas vão ali para fazer compras e dar um bocado à língua. Fora disso, é um lugar solitário, melancólico, como tudo o que fica longe e separado do mundo."

Eis a personagem feminina mais esquisita da literatura, a Amelia Evans:
Era uma mulher alta, morena, com ossos e músculos de homem; usava o cabelo curto, penteado para trás; no seu rosto trigueiro notava-se qualquer coisa de fixo, de abstrato. Poderia ter sido bela se não fosse um pouco estrábica. Pretendentes não lhe faltavam. Ela, porém, preferia a solidão, indiferente ao amor do sexo oposto. O casamento que contraiu foi diferente de todos os que se celebraram no país - estranho e perigoso enlace, que durou apenas dez dias e deixou uma impressão de escândalo e surpresa. Exceto quanto a esse matrimônio extravagante, o resto da sua vida foi de criatura solitária. Chegava a passar noites inteiras no telheiro dos pântanos, vestida de macacao e botas de borracha, a vigiar o fogo brando do alambique.
Miss Amelia prosperava com tudo o que se pode fazer com as mãos. Para a terra vizinha vendia chouriços e salsichas. Nos dias bonitos de outono moía sorgo, e o xarope que saía das suas dornas era dourado e aromático. Perita em carpintaria, construíra em quinze dias uma retrete atrás do armazém. Com os seus semelhantes é que ela não estava à vontade. As pessoas, a não ser que sejam pobres de espírito ou muito doentes, não podem ser agarradas com as mãos e transformadas de um dia para o outro em qualquer coisa mais valiosa e rentável.
Miss Amelia gostava de receitar e de fazer tratamentos. Nas estantes acumulavam-se frascos de remédios e coisas relativas à medicina. Junto da parede havia um banco para os pacientes se sentarem. Ela era capaz de suturar as feridas com uma agulha posta previamente ao lume, de forma a não as infectar. Para as queimaduras tinha unguentos refrescantes, e para as afecções não localizadas possuía drogas que compunha segundo receitas misteriosas: aliviavam bastante os intestinos, mas não se devia prescrevê-las às crianças, por causa das convulsões que provocavam; essas usufruíam de certa mezinha especial, de bom paladar e bastante suave. Enfim, no conjunto, Miss Amelia era considerada boa doutora. As suas mãos, apesar de grossas e ossudas, faziam contatos leves. Não lhe faltava também imaginação para recorrer a dezenas de remédios diferentes. Não hesitava perante tratamentos perigosos e extraordinários: por mais terrível que fosse a enfermidade, aquela mulher não temia empreender a cura. Só com uma exceção: não sabia o que fazer às doenças das mulheres. Bastava-lhe ouvir mencionar estas três palavras para que o seu rosto se sombreasse de embaraço; ela esfregava o pescoço de encontro à gola da camisa, ou as galochas uma na outra, exatamente como procederia uma criança envergonhada. Noutras matérias, porém, o povo não se enganava se confiasse nela. E nunca exigia pagamento. Não admira que os doentes acorressem à sua casa.

Ela largou o marido apos 10 dias de casamento, ele era um brucutu, bandido e membro da Ku-Klux-Klan, chamado Marvin Macy. Em seguida, apaixonou-se pelo "primo" Lymon, um anao e corcunda que apareceu na casa dela.
"Há de ser por este motivo que a maior parte de nós prefere amar a ser amado. Quase todos querem ser o agente ativo. E a pura verdade é esta: no íntimo, o fato de ser amado torna-se intolerável para muitos. O amado teme e odeia o amante, e pela melhor das razões. O amante pretende esbulhar o amado, ainda que isto lhe cause sofrimento."

Acontece uma reviravolta fenomenal e tragica nesta historia que me deixou boquiaberta por dias. Nem posso falar mais nada para nao dar spoiler. Apenas leiam! O livro tem apenas 60 paginas.

O Coraçao é um Caçador Solitario


Este é o primeiro romance que autora escreveu aos 23 anos. A trama acontece numa cidadezinha no Sul dos Estados Unidos, na década de 30. É um livro que aborda varios assuntos: ideologias politicas (capitalismo fascista e comunismo), desigualdade social, feminismo, sexualidade (homoafetividade, bissexualidade e pedofilia) e racismo (segregaçao racial americana). Eu vou mencionar estes assuntos ao falar de cada personagem. As citaçoes deixarei em francês, idioma do livro que li, apenas para meu arquivo pessoal.

Singer

No primeiro capitulo temos a historia de dois surdos-mudos que moram juntos e andam de braços dados pela rua. Sao eles: John Singer, um homem misterioso e Spiros Antonapoulos, um grego obeso e meio retardado. Singer era obcecado pelo grego e nao suportava viver separado dele, pensava nele todos os dias. Acontece um problema e o grego é preso e depois internado. Sempre que podia, Singer ia visita-lo, levava presentes e comida, fazia de tudo para agrada-lo (homoafetividade). 
"Son visage prit l'expression de paix mélancolique qu'on voit aux gens très tristes ou très sages. Il continuait cependant d'arpenter les rues de la ville silencieux et solitaire."
Apos a partida do grego, ele passa a frequentar o Café New York, onde ele faz suas refeiçoes diarias e conhece pessoas frustradas e de coraçao solitario como ele, sao cheias de sonhos e de ideologias que nao as levam a lugar nenhum. Todos gostavam dele, mesmo sendo surdo-mudo, era o que mais escutava e dava atençao aos outros. É um paradoxo interessante. 

Briff Brannon

É o dono do café, observa os clientes, tem pena de alguns, principalmente dos doentes e mutilados, fica viuvo e se apaixona pela Mick, uma menina de 12 anos, mas jamais vai dizer isso a ela. Temos aqui um caso de sentimento pedofilo, a partir do momento que ela cresce e parece mais mulher, ele perde o interesse.
"Et Mick, l'amour qui durant ces derniers mois s'était se étrangement logé dans son coeur. Cet amour était-il mort aussi? Oui. C'était fini. Elle avait grandi. Ses manières brusques et enfantines avait presque disparu. Et à la place, on sentait poindre en elle une féminité délicate."

Jake Blount

Aparece no café, embebeda-se, nunca paga a conta, dispara a falar sozinho, mas ninguém da atençao, mudava de sotaque e de vocabulario, ora falava como analfabeto e ora falava como um professor. Sua aparência produzia um efeito cômico. Ele achava que tinha o dever de falar a verdade aos operarios e a todos os que eram explorados pelo sistema, mas ninguém ouvia e ainda zombava dele. Era como Sao Joao Batista, a voz que clama no deserto, um revolucionario incompreendido. Isso o deixava frustrado e cada vez mais pirado. Porém seus discursos eram bonitos.
"L'Amérique lui apparaît comme une maison de fous. Il voit les hommes obligés de voler leurs frères pour vivre. Il voit les enfants crever de faim et les femmes travailler soixante heures par semaine pour gagner de quoi manger. Il voit une année entière des chômeurs et des milliards de dollars gaspillés, des milliers de kilomètres de terres à l'abandon. Il voit venir la guerre et il voit à force de souffrir, les gens deviennent méchants e laids, et quelque chose meurt en eux. Mais surtout il voit que le système entier est bâti sur un mensonge. Et bien que ça soit clair comme le jour - les ignorans vivent avec ce mensonge si longtemps qu'ils ne peuvent pas s'en apercevoit."
"Jésus, par exemple. Il était des nôtres. Il savait. Quand il a dit qu'il était plus facile à un chameau de passer par le chas d'une aiguille qu'à un riche d'entrer dans le royaume de Dieu - il savait fichtrement bien ce qu'il disait. Mais regarde comme l'Église a traité Jésus depuis deux mille ans. Ce qu'elle a fait de lui. Sa manière d'utiliser chaque mot qu'il a prononcé à leurs ignobles fins. Jésus serait jete en prison de nos jours. Jésusnferait partie de ceux qui savent vraiment. Moi et Jésus, on serait assis l,un en face de l'autre à table, je Le regarderais et Il me me regarderait et chacun saurait que l'autre sait. Moi, Jésus et Karl Marx on s'assoirait à une table..."
"Ils se sont battus pour que dans ce pays on soit tous libres et égaux. Ah! Et ça signifiait que tous les hommes étaient égaux devant la nature - avec des chances égales. Ça ne signifiait pas que 20% des gens étaient libres de dépouiller les 80% autres de leurs moyens d'existence. Ça ne signifiait pas qu'un riche ait le droit d'exploiter dix mille pauvres jusqu'au trognon pour s'enrichir. Ça ne signifiait pas que les tyrans étaient libres de fourrer ce pays dans un tel pétrin que des millions de gens sont prêts à escroquer, mentir ou se couper le bras droit - rien que pour gagner de quoi croûter trois fois par jour et coincer la bulle. Ils ont fait du mot liberté un blasphème."
"Le monde est plein de cruauté et de mal. Ah! Les 3/4 du globe sont en état de guerre ou d'opression. Les menteurs et les monstres sont unis, mais les hommes que savent sont isolés et sans défense."
"Ces industries ont déjà sucé le sang at amoulli les os du peuple. L'époque de l'expansion, c'est terminé. Le système de la democratie capitaliste est tout entier pourri et corrompu. Il ne reste que deux voies: le fascisme ou une réforme permanente, radicalement révolutionnaire."

Doutor Benedict Mady Copeland

Na década de 30, os negros eram proibidos de frequentar alguns lugares publicos e estabelecimentos por questoes raciais, mas o Dr. Copeland era negro e formou-se em Medicina, lutava pela igualdade racial, era vegetariano, leu mais livros que qualquer um branco da cidade, gostava de Spinoza, Shakespeare e Karl Marx, era ateu, ia de casa em casa educar o povo, promovia discursos sobre controle de natalidade e distribuia contraceptivos, dizia: "Nao precisamos de mais crianças na terra, mas de mais oportunidades para aqueles que ja nasceram". Teve 4 filhos e tinha um projeto de vida para eles: um seria cientista renomado, outro seria professor dos negros, outro seria advogado e a menina seria médica das mulheres, mas nenhum seguiu os conselhos dele, preferiram ficar do lado da mae que era religiosa, iam para igreja com ela, tiveram subempregos, foram submetidos a todo tipo de humilhaçao e nao herdaram o orgulho e nem a ambiçao paterna para o desgosto do mesmo. Ele sonhava em fazer uma passeata com mais de mil negros até Washington. Na vida real, o Pr. Martin Luther King realizou o sonho do Dr. Copeland.
Ele faz um discurso sobre Marx na festa de Natal:

 Fala da escravidao dos negros:


"Comment les morts peuvent-ils être vraiment morts quand ils continuent à vivre dans l'âme de ceux qui restent?"

Mick

A Mick era uma menina muito inteligente, tirava notas boas na escola, pensava muito, nao acreditava em Deus, amava musica, sempre parava para ouvir algo tocando no radio, sonhava em ser regente de uma orquestra e de criar uma sinfonia, queria comprar um piano. Porém ela começou a trabalhar na farmacia para ajudar na renda familiar, saiu da escola e seus sonhos foram por agua abaixo. Ela jogava com a bissexualidade, às vezes ela se vestia de menino, às vezes era feminina. Era o alter-ego da autora também.
Tanto que quando ela sonhava em ser regente, ela poderia vestir um smoking masculino ou um vestido de paetê no dia da apresentaçao. Dizia para seu amigo Harry que o ajudaria lutar contra o fascismo na Europa, pois ela nao se importava de cortar o cabelo e se vestir de soldado, ninguém nem ia notar que ela era mulher. Seus sentimentos também mistos. Ela sonhava com a Celeste, uma menina que estudava com ela, mas nunca conversaram. Gostou do Buck, da moça que vendia bilhete de loteria, da professora do 6° ano, do Singer e do Harry com que teve sua primeira experiência sexual e disse para ele nunca iria se casar.
Tinha um discurso feminista sobre a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho.

"Certaines musiques étaient trop intimes pour être chantées dans une maison bourrée de gens. C'était drole, aussi, à quel point on pouvait être seul dans une maison pleine à craquer. Mick se creusa la tête pour trouver un endroit bien secret où elle étudierait tranquillement cette musique. Mais elle avait beau réfléchir longuement, elle savait depuis le début que l'endroit idéal n'existait pas".
Este livro peguei na biblioteca, tem 466 paginas e dei 5/5 no Goodreads. Muito bom! Lerei tudo o que essa mulher escreveu. A vida dela foi tao bizarra quanto a de seus personagens. É isso!

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