sábado, 11 de fevereiro de 2017

Balanço de leituras dez-jan

Contos

  • Ovelhas Negras - Caio Fernando Abreu
Matando a saudade da minha adolescência relendo Caio. Nao gosto de releituras, toda vez que releio eu perco o tesao que eu senti ao ler a primeira vez. Meus contos preferidos deste livro hoje sao:
Lixo e purpurina: um diario autobiografico durante o tempo que ele passou em Londres. Parece que todo expatriado vira poeta, né nao?
8 de fevereiro
Chorei três horas, depois dormi dois dias.
Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total. 
25 de fevereiro
Essa morte constante das coisas é o que mais dói.
Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro 
Sem data
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?
10 de abril
(...)
Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre-arbítrio um roteiro fixo, predeterminado, que não pode ser violado. Um roteiro interno que nos diz exatamente o que devemos ou não fazer, e obedecemos sempre, mesmo que nos empurre para aquilo que será aparentemente o pior. O “pior” às vezes é justamente o que deveria ser feito.
26 de maio
Hermes me dá os poemas de Sylvia Plath. São febris, obsessivos, mórbidos, mas não consigo parar de ler. Fico tentando traduzir Fever 103, mas é difícil, já nos três primeiros versos tenho um problema:
Pure? What does it mean?
The tongues of hell
Are dull, dull as the triple (...)
Os dois primeiros versos, tudo bem. E “labaredas” acho que fica melhor que “línguas”, é evidente que ela está se referindo ao fogo dos infernos. Mas como traduzir dull? Opacas, sujas, gordurosas?
Sylvia Plath é sempre um mal-estar. 
 O conto "Anotações sobre um amor urbano" é tao lindo e dolorido ao mesmo tempo...
“Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como está. Feche as portas, não pague as contas nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, o resto são os restos. E não importam”. Mas seus livros, seus discos, quero perguntar, seus versos de rima rica? Mas meus livros, meus discos, meus versos de rima pobre? Não importa, não importa. Largue tudo. Venha comigo para qualquer outro lugar. Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama. Agora, já. Peço e peço e não digo nada mas peço e peço diga, diga já, diga agora, diga assim. Você não diz nada. Você não me vê por trás do meu olho que vê. Você não me escuta por trás da minha boca que pede sem dizer, e eu bem sei. Você planeja partir para um país distante, sem mim, de onde muitos anos depois receberei a carta de um desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua morte. Foi em abril, dirá, abril ou maio. Ou setembro, outubro. Os mais cruéis dos meses. Tanto faz, já não importará depois de tanto tempo, numa cidade remota.
"Sob o céu de Saigon" é o conto mais paulistano dele. Descreve tao bem a galera que sobe e desce a Rua Augusta aos sabados, fala do Conjunto Nacional, do estilo das meninas de camiseta, jeans e tenis surrado, sempre segurando a bolsa. Bateu aquela saudade de casa.

Teatro

  • O Circulo de Giz Caucasiano - Bertolt Brecht

Numa cidade do antigo Caucaso, o rei é deposto e enforcado, a rainha foge deixando o filho para tras. Groucha que trabalhava na cozinha do reino, compadece da criança e o cria como se fosse dela. Com o tempo a rainha procura o filho e reivindica a maternidade. Groucha passou por varias dificuldades e até humilhaçoes para proteger a criança. Mae é quem pariu ou quem cuidou? That is the question.


  • O Casamento do Pequeno Burguês + 4 peças- Bertolt Brecht

É uma comédia. O noivo fez questao de construir com suas proprias maos, os moveis para sua nova casa. Durante o almoço de casamento, a mesa e as cadeiras começam a desmontar, a porta do guarda-roupa esta emperrada. Um convidado começa a dar em cima da noiva que casou gravida, uma parafernalia sem fim.

Uma outra peça que esta no mesmo livro é a Lux in tenebris. Paduk instala uma tenda na frente do bordel da madame Hogge. Passa a dar palestras educativas (cobra a entrada por isso, obviamente!), mostrando as consequencias das doenças venéreas, falando do pecado da prostituiçao, de que as prostitutas sao vitimas, etc, etc. Até que a madame do bordel chega para ele e fala: se você destroi o meu negocio, o seu vai ser destruido também. Se ninguém mais frequentar o bordel, também nao frequentarao suas palestras e você nao ganhara dinheiro facil.


  • Os Monologos da Vagina - Eve Ensler

Tem post aqui.


  • Incêndios - Wajdi Mouawad


É a segunda peça teatral da tetralogia "o sangue das promessas", do dramaturgo e diretor quebecois de origem libanesa, Wajdi Mouawad. Narra a história de Nawal que ao falecer deixa um testamento para seus filhos, um casal de gêmeos, lá ela deixa pistas de como eles podem conhecer suas origens e quem era o pai deles.
"Há verdades que só podem ser reveladas na condiçao de serem descobertas. Vocês abriram o envelope, vocês quebraram o silêncio".

Poesia


  • Capitale de la douleur - Paul Éluard

Éluard escrevia poesia surrealista. Ouvi falar dele pela primeira vez quando assisti ao filme Alphaville, de Godard em que a atriz Anna Karina lê umas poesias dele.
Ler poesia surrealista é a mesma coisa de estar sob efeito da cannabis, alguém fala sério com você, mas você nao consegue conectar uma coisa com a outra e começa a rir por nao estar entendendo bulhufas. Vou reler, é falta de entendimento sobre o Surrealismo, vou me inteirar primeiro. Mesmo assim algumas me cativaram, deixo duas:
Nudité de la vérité 
Le désespoir n’a pas d’ailes,
L’amour non plus,
Pas de visage,
Ne parlent pas,
Je ne bouge pas,
Je ne les regarde pas,
Je ne leur parle pas
Mais je suis bien aussi vivant que mon amour et que mon désespoir.
La courbe de tes yeux 
La courbe de tes yeux fait le tour de mon cœur,
Un rond de danse et de douceur,
Auréole du temps, berceau nocturne et sûr,
Et si je ne sais plus tout ce que j’ai vécu
C’est que tes yeux ne m’ont pas toujours vu.
Feuilles de jour et mousse de rosée,
Roseaux du vent, sourires parfumés,
Ailes couvrant le monde de lumière,
Bateaux chargés du ciel et de la mer,
Chasseurs des bruits et sources des couleurs
Parfums éclos d’une couvée d’aurores
Qui gît toujours sur la paille des astres,
Comme le jour dépend de l’innocence
Le monde entier dépend de tes yeux purs
Et tout mon sang coule dans leurs regards.

  • Baladas - Hilda Hilst
Foi so amor. Amei tudo. Alguns fragmentos:

Gostaria de encontrar-te.
Falar das cousas
que já estão perdidas.
Tuas mãos trementes
se desmanchariam
na sonoridade
dos meus ditos.
Faria de teus olhos
luz,
de tua boca
um eco.
Nos teus ouvidos
eu falaria de amigos.
Quem sabe se amarias escutar-me.
_______________________________________
Só não existe amargura
onde não existe o ser
Só não morro de amargura
porque nem mais morrer eu sei.
 
________________________________________
Me fizeram de pedra
quando eu queria
ser feita de amor
________________________________________
Ah! Se ao menos em ti 
eu não me dissolvesse.
E se ao menos contigo
ficar pouco de mim
lembrança de algum dia
ou meu nome guardar
um momento de sol...
Se ao menos existisse
em nós a eternidade. 

  • O Coraçao disparado - Adélia Prado
Gosto da mescla sacra-profana das poesia da Adélia, ela mistura simbolos do catolicismo no meio de qualquer assunto. Meus poemas preferidos: Tempo, Corridinho, Dolores, Paixao, Gênero e Entrevista.
Fragmentos:

A vida rui? A vida rola mas não cai. A vida é boa. (Tulha)

Eu sou feita de palha,
mulher que os gregos desprezariam?
Eu sou de barro e oca.
Eu sou barroca. (Gênero)

Tua dor de cabeça tem origem psíquica;
tantos comprimidos à mão,
nenhum para o esquecido calor de entre as pernas... (A fala das coisas)



  • Biografia para encontrarme - Mario Benedetti
Ja falei que amo Benedetti, também Galeano e Mujica y todos los hombres uruguayos. Dios mio! Si quieres darme un hombre, que sea del Uruguay. Amen!
Poemas preferidos: Libros, Los que se fueron, Mi pais, Droga del amor, Anoranzas, Existir, Catastrofe, No estoy, Escandalo e Entre dos vacios.
Resumiendo
no somos los que somos
ni menos los que fuimos
tenemos un desorden en el alma
pero vale la pena sostenerla
con las manos / los ojos / la memoria
tratemos por lo menos de engañarnos
como si el buen amor
fuera la vida (Resumen)
__________________________________
la felicidad tal vez consista en eso
en creer que creemos lo increíble (Mentiras piadosas)
___________________________________
Catástrofes 
Yo guardo mis catástrofes con mimo
con ellas aprendí más que en mis éxitos
el dolor deja cicatrices sanas
y nos da clases sobre lo prohibido
lo que duele un desastre no se olvida
la memoria lo guarda bajo llave
a veces tantas veces cada tanto
las catástrofes son revelaciones
uno se enfrenta a lo que no sabía
de sí mismo y es una sorpresa
las cicatrices son como dibujos
que describen un poco nuestra vida
son un secreto que no se revela
porque el dolor esconde su tristeza

  • Œuvres Poétiques - Arthur Rimbaud
Poemas que mais gostei: Mauvais sang, Alchimie du verbe, Faim, Soleil et char, Les pauvres à l'église,  Le coeur du pitre, Voyelles

"La morale est la faiblesse de la cervelle"

Epistolar

  • Correspondências - Clarice Lispector
Tem post aqui

Ensaio


  • La Société du Spectacle - Guy Debord
É um ensaio filosófico, sócio-político, econômico e social. Excelentes reflexões sobre ideologias, consumo, meios de produção, urbanismo, turismo, artes, publicidade e propaganda, meios de comunicação em massa, etc.


Policial


  • O Natal de Poirot - Agatha Christie
Foi meu primeiro contato com a obra da Agatha Christie. Gostei! Poirot é uma figura.


Romance


  • Oliver Twist - Charles Dickens
Charles Dickens sendo Charles Dickens batendo sempre na mesma tecla. Um menino orfao que nao se deixa corromper, é colocado em situaçoes complicadas, cheio de viloes, mas consegue se sobressair. Adoro a escrita dele, apesar dos traços da moralidade puritana do séc. XIX.
Vou fazer uma nao-resenha mais para frente sobre o livro e o filme, pois coloquei em pratica uma coisa que Virginia Woolf disse. Depois explico.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Os monologos da vagina, de Eve Ensler

O livro escolhido de janeiro/fevereiro do grupo Our Shared Shelf, foi a peça teatral "Os monologos da vagina", da dramaturga, performer e ativista americana, Eve Ensler. Comprei a ediçao em francês no Kobo. Adorei essa capa de duplo sentido!

Dedicatoria:
"Dedico este livro à todas as mulheres. Que suas vaginas sejam honradas, queridas e livres"
Começa com um prefacio da Gloria Steinem que conta como a genitalia feminina ainda é um tabu na sociedade ocidental. Nem as mulheres sentem-se à vontade de pronunciar a palavra vagina, costuma-se apontar para baixo ou inventar eufemismos para evitar falar esta palavra. Conta também que nos templos hindus é comum ver simbolos que representam os orgaos sexuais tanto masculino como feminino que sao considerados sagrados no Tantra e é a energia do orgao feminino que tem o poder de revigorar a energia masculina.
Em seguida tem o prefacio da propria autora explicando o que a motivou a escrever este monologo. Ela sofreu abuso sexual na infância e tinha dificuldade em lidar com esta parte do corpo.
Notou também que quando a peça estreava em varios lugares do mundo, sempre sofria censura por causa do titulo. A publicidade, os ingressos, o cartaz vinham escrito apenas "Monologos" ou "Monologos da V." Ela se pergunta o porquê disso, visto que vagina é um termo medical e nao pornografico.
Explica porque a palavra vagina precisa ser falada, pois 500 mil mulheres sao estupradas nos EUA a cada ano, 100 milhoes de mulheres sao submetidas à mutilaçao genital. Todas essas dores criam um muro impenetravel, tornando dificil falar vagina, como se fosse uma coisa suja, que atrai problemas.
A autora entrevistou cerca de 200 mulheres de varias faixas étarias, etnias, religioes, heteros e homos para criar o texto.

O primeiro monologo chama-se "Pêlos". Sobre uma mulher que o marido exigia que ela se depilasse por completo. Ela odiava, tinha alergias, os pêlos encravavam, sentia como se fosse uma criança. Até que um dia ela preferiu os pelos ao marido que ja tinha chifrado ela varias vezes.

O segundo monologo é dedicado a uma senhora de 72 anos que nunca tinha olhado para propria vagina, nunca tinha tido um orgasmo e nunca tinha se masturbado. Intitulado "Inundaçao", narra a historia de uma moça apaixonada que estava no carro com o cara que ela gostava, eles começaram a se beijar e ela ficou tao molhada, mas tao molhada que molhou até o banco do carro. O moço ficou enojado por ela ter sujado o carro dele. Ela ficou tao decepcionada que a partir daquele dia evitou todo contato para nao mais acontecer uma outra inundaçao.

O terceiro chama "Fatos historicos da vagina", foi retirado da Enciclopedia Feminina. Em 1563, durante um processo de acusaçao de bruxaria. O magistrado (casado) descobriu o clitoris da acusada, chamou-o de colina do diabo, ninguém no recinto tinha visto um clit antes. Claro que a mulher foi queimada na fogueira por ter um fucking clitoris.

O quarto monologo fala da primeira menstruaçao e dos traumas que vem junto. O medo de sujar a roupa, a escolha entre absorventes internos e externos, etc.

O sexto também é "Fatos historicos da vagina" e fala que o clitoris é o unico orgao humano feito apenas para o prazer, com 8000 terminaçoes nervosas, é a maior concentraçao de terminaçoes nervosas que se pode encontrar no corpo humano.
(EIS A BENÇAO DE SER MULHER! So nos temos o privilégio de ter esse orgao maravilhoso. Vamos nos orgulhar dele)

Tem um outro monologo chamado "Minha vagina, minha cidade", dedicado às mulheres da Bosnia. Aff! É muito dolorido. Nao tem como nao chorar quando você vê que o corpo da mulher é usado como arma de guerra. Mulheres eram estupradas pelos inimigos e engravidam deles e viravam maes de filhos indesejados.

Em seguida vem outro monologo sobre "Fatos historicos da vagina". Conta que no século XIX a masturbaçao feminina era tratada como caso clinico, o tratamento era a incisao ou a cauterizaçao do clitoris ou o uso de cinto de castidade. O ultimo caso de clitoridectomia que se tem noticia, aconteceu nos EUA, em 1948, em uma menina de 5 anos de idade.

O outro "Fatos historicos" fala da mutilaçao, das mais de 100 milhoes de mulheres que sao submetidas a isso, a mutilaçao é feita com caco de vidro, tesouras enferrujadas, etc. Fala de todos os problemas de saude que vem depois. Infecçoes, lesoes na uretra, cicatrizes, abortos. É de se revoltar!

Tem varios outros monologos, mas vou parar por aqui. A vagina é isso, uma zona de dor e de prazer. Infelizmente a maioria das mulheres do mundo nao tem controle do seu proprio corpo, todo mundo quer opinar o que elas devem ou nao fazer, elas nao tem direitos, sao mutiladas, agredidas, violentadas e têm medo de falar sobre o assunto. 
A mulher ainda tem que lutar muito para ser dona do proprio corpo, buscar um prazer saudavel, pedir coisas na cama, se tocar. Ela tem um orgao feito para o prazer, mas ela se nega a senti-lo para nao ser mal vista. Liberem-se, moças!

Pinto, porra, caralho estao em todas as bocas, é falado em qualquer conversaçao. Agora tenta falar vagina ou feminismo....

Aproveitando o tema, a minha youtuber francofona favorita fez um video falando de vulva. É tema do seu novo livro e que lerei também, bien sûr! Ela fala que a labioplastia é também uma mutilaçao e que nao precisamos ter a vagina feita com cirurgia plastica das atrizes pornôs. Nos temos labios de varios tamanhos, de varias cores e com pêlos. Lidem com isso!